segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Desencanto

A cada esquina
Capturo uma palavra:
Dura
Áspera
Acinzentada.

Atravesso ruas
Muros
Calçadas.
Coleciono prosas
Dores e almas.

Do mais alto edifício
Do beco mais sangrento
Vou tecendo a minha flor
Concreta
No cimento.

Desprovida de metáfora
Ou qualquer simbologia
Nasce
A mais real e menos bela
Poesia.


domingo, 10 de maio de 2015

Descamação

Esvazio-me do mundo.

Recorto memórias que não são minhas.
Esqueço dores e fomes e guerras.
Decomponho-me.
Rasgo-me
Até o cerne desta fluidez.
Recolho partes que ainda me têm.

Qual foi a palavra que me cortou?
Era vinho, mas em sangue derramou.

Em mim já não cabem
Euforias e lutas outras.

Não cabe o mundo...
Este mundo que não é meu
Este mundo que é muito
Para a minha alma pouca.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Me deixa ser a Mulher

Me deixa ser a Mulher
Do cabelo queimado
Do sonho roubado
Do sorriso pintado.

Me deixa ser a Mulher
Guerreira e partida
De dia, opaca
De noite, querida.

Me deixa ser a Mulher
Que chora escondido
Que cospe, que venta
Que ama invertido.

Me deixa ser a Mulher
Da medida incerta
Da cintura torta
Da postura imprópria.

Me deixa ser
A pessoa qualquer
Do samba
Da vida

Completa... Mulher.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Confissões


Sempre tive uma certa resistência à religião. Não era a fé, em si, que me incomodava, mas o modo como a religião transforma a vida das pessoas. Guerras, restrições, hipocrisias, doutrinas, preconceitos, manipulações. Passei a encarar tudo isso com um olhar negativo.

Aprendi, desde criança, a ter uma visão crítica sobre qualquer leitura, até mesmo em textos de autores conceituados. Por que a Bíblia, então, não poderia ser questionada?

Tudo começou com a intensa propaganda religiosa que me esbarrava em qualquer canto, social e virtual. Parecia que o mundo me fazia engolir aquele bombardeio de palavras que se afirmam como verdade: eu vou para o inferno, eu não sou nada sem Deus, eu sou uma pecadora desde que nasci.


Ouvi discursos de união e compaixão de pessoas egoístas. Ouvi pessoas defendendo direitos iguais para todos e sem qualquer tolerância a ateus, homossexuais ou mesmo pessoas de outra religião. Elas acreditavam ser mais felizes, ser “gente de bem”. Aquilo não fazia sentido para mim.

A cada dia que passava, meu ceticismo se tornava mais presente. Ao mesmo tempo, me sentia mais vulnerável, entregue ao acaso. Eu nada podia controlar. Passei a ser julgada por não acreditar em nada. Em nome da liberdade, defendi arduamente meu ponto de vista, minha opinião crítica. Exigi o direito de me expressar, pela fala e pelo corpo.

Em meio a tanta resistência, percebi ter adquirido o discurso do meu próprio opressor: a intolerância. Minha luta era legítima, mas não estava nos meus planos sentir repúdio.

Sei pouco sobre religião, mas entendi que as práticas são diferentes. E, principalmente, pessoas são diferentes. Procurei ouvir mais, entender mais. O preconceito existe em diversos campos – quando um ateu diz ao religioso que este é ignorante, por exemplo –, assim como o caráter é individual, independente de religiosidade. Hoje, confesso, luto contra o meu próprio preconceito.

Não é o cristianismo que está em jogo. Não é ele que define quem somos ou nossas atitudes. A questão está na incapacidade que muitos têm de respeitar, aceitar modos e valores distintos. Não é a sua religião que quero combater, e sim a parte dela que não me tolera, a parte que fere a liberdade e escolha alheia. O mesmo vale para outros casos. Não lutamos contra brancos e homens, mas sim contra o racismo e o machismo.

Nunca entendi muito bem como uma entidade invisível pode ser tão adorada há séculos de humanidade. Porém, compreendi que existia, de alguma forma, uma crença dentro de mim, uma forma de transcender. E ela está no amor que sinto, na minha força interior, no meu olhar sobre o ser humano, na energia que minha mente proporciona ao corpo. Está na poesia que eu leio, na arte que comove. Tudo isso é impalpável. Mas, acredite no que vou lhe confessar: é real.