domingo, 12 de outubro de 2014

Língua: sociedade, ensino e poder


Desde que entrei para o curso de Letras, muitos me contam histórias de pessoas que cometem “desvios” linguísticos, esperando, talvez, uma risada minha. Ou então me perguntam o quanto dói em meus ouvidos a frase “para mim fazer”. O que me dói, de fato, é a ignorância não dos que falam, mas dos que julgam.

Em primeiro lugar, vale dizer que o conceito de Gramática é polissêmico. Erroneamente, acreditamos que existe apenas uma Gramática, aquela que prescreve as normas, que estabelece o padrão a ser seguido. Uma das definições de Gramática se refere à Gramática Internalizada, ou seja, aquela que o indivíduo adquire ao longo da infância ao ser exposto a determinado meio. Trata-se de uma capacidade inata do ser humano.

Não existe, portanto, o falante nativo do Brasil que não sabe Português. Todos dominam o sistema de regras da sua língua; todos falam e se comunicam, excetuando os casos de anomalias físicas e outras razões. Se um indivíduo diz “Traz o ovo para mim fazer a fritada”, o entendimento da frase é plenamente alcançado.

A Gramática que estudamos hoje, nas escolas, é herança de um conjunto de normas estabelecidas pelos grandes gramáticos. Como revisora de textos acadêmicos, ela é de extrema importância para o meu trabalho. É minha fonte de pesquisa, meu ponto de partida. No entanto, as críticas às gramáticas tradicionais são inúmeras: muitas das regras são convencionadas, não passíveis de explicação, às vezes incoerentes e sem finalidade prática. Meras definições e classificações não garantem a compreensão da língua, que é, antes de tudo, instrumento de comunicação. Denominar um sujeito e um objeto como tais não permite ao aluno maior capacidade de interpretação, não o faz falar ou escrever melhor.

As piadas em torno de uma construção sem concordância verbal, por exemplo, acentuam não apenas o preconceito linguístico, mas também o preconceito social. Em “as menina”, temos um sintagma recorrente nas populações de classe mais baixa. Não se trata de “certo” e “errado”. São formas variantes da língua portuguesa.

A língua dita culta é abstrata, não corresponde à realidade de uso, inclusive entre os falantes mais escolarizados. Ao inverter a ordem de uma frase – quando o verbo aparece antes do sujeito –, é comum cometermos um desvio da norma “padrão”, deixando de lado a concordância (por exemplo: “não faz sentido, na atual circunstância, soluções imediatas”). Assim como na frase “haverão novos funcionários” (em que o verbo “haver” é invariável) ou em “Vou levar ela para passear”  (os pronomes pessoais não poderiam assumir a posição de objeto direto). São estruturas presentes na fala e até mesmo na escrita de textos formais; a diferença é que, por serem usuais entre a população considerada de maior prestígio, não sofrem o mesmo estigma daquelas realizadas pela classe mais baixa.

Tomemos outros casos como exemplos. Se um livro narra a história de personagens que habitam uma favela brasileira, os diálogos devem acompanhar a língua padrão daquela localidade, e não a língua culta, artificial. Na música de Dorival Caymmi – “Hoje eu sou Gabriela, Gabriela, ê, meus camarada” –, a ausência de concordância retrata a fala regional, tornando a canção ainda mais pessoal.

Clarice Lispector, ao iniciar uma de suas obras com uma vírgula, cria discussões entre os críticos literários, mas é logo associada a um estilo próprio, uma licença poética. Uma letra de um funk, ao dizer “as novinha tão sensacional”, aproxima o cantor da sua comunidade, dando um destaque e uma força que não existiriam com a concordância. No entanto, o preconceito é inevitável, mais pela classe de onde surgiu a música do que pela língua em si.

Por último, cito a polêmica que envolveu o livro didático distribuído pelo MEC, Por uma vida melhor, da autora Heloísa Ramos. O livro, por tratar do fenômeno variável da concordância, foi alvo de críticas de leigos, escritores renomados e, principalmente, das mídias manipuladoras que repassaram informações distorcidas e descontextualizadas. Como sugeriram televisões e jornais, o livro “ensina o erro” às crianças ao explicar que a construção “Os menino pega o peixe” está correta. Especialistas da área logo se manifestaram. Primeiro: o livro foi destinado à Educação de Jovens e Adultos (EJA), ou seja, pessoas que já trazem um conhecimento e maior experiência. Segundo: o assunto foi abordado em uma seção que atentava justamente para o preconceito linguístico, mostrando as formas da língua que variam em contexto e desconstruindo as noções de “certo” e “errado”. Enquanto muitos criticavam, nós, alunos e professores de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, repudiamos as repercussões de ignorância.

Extinguir as gramáticas não é a solução. Elas precisam ser reformuladas, assim como o atual sistema de ensino. As aulas de português deveriam ser dedicadas a exercícios que estimulem a leitura e a escrita e atividades que permitam o contato com os diversos tipos e gêneros textuais. O aluno aprenderia, assim, a adequar sua linguagem a cada contexto e situação social – ambiente, nível de formalidade, público-alvo etc.

A mudança no ensino não ocorre sem antes haver a mudança no pensamento comum, a ampliação de uma visão crítica e mais cuidadosa com a educação. A língua funciona como um instrumento de poder na sociedade, ditadora e excludente, enquanto deveria ser um direito a todos. Somos nós, falantes, os donos da língua, sem distinção de classe. Nós usamos, moldamos e reconstruímos aquilo que é patrimônio público e cultural.