segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O espelho

Recordo-me bem daqueles tempos. Não pela boa memória, mas principalmente por ter sido uma época marcante. Eu devia ter os meus dezesseis anos. Morava sozinha com minha mãe, e raramente visitava meu pai, que nos deixou quando eu ainda era criança. Pouco havia de semelhança entre nós duas, exceto o gosto pela música que herdei.

Eu costumava tocar flauta nas horas vagas, até decidir que queria mesmo aprender a tocar piano. O pesado e empoeirado piano no antigo quarto da minha avó seria finalmente reutilizado, e o próprio quarto tornar-se-ia o novo aposento para as minhas aulas particulares. Foi nesse primeiro dia de aula que teve início todo o mistério que me envolveria por bastante tempo.

Não tinha o menor jeito de professor. Era alto, magro, usava sempre óculos escuros, um chapéu marrom e roupas pretas, além de uma bengala aparentemente dispensável: ele era jovem e não mancava. Pude perceber, contudo, a sua enorme experiência como professor e pianista.

O fato de ser um homem frio e de falar pouco me intrigava. Mas o que mais me chamava a atenção era o espelho que carregava consigo, todos os dias. Durante as aulas, de poucos em poucos minutos, ele retirava do bolso um pequeno espelho de moldura frágil, colocava o óculos na mesa, e fixava o olhar sombrio na imagem pálida refletida. Inquieta, eu fingia estar distraída nessas horas, ou quebrava o silêncio com a primeira pergunta que viesse à cabeça: “Quer um suco?”.

Essa situação se repetiria ainda por muitas vezes, não fossem pelas mudanças de planos do professor. Três meses depois, ele se aposentou, sem nenhum motivo claro, e com um estranho pedido de desculpas por carta. Por um lado me senti culpada, por ter me mantido sempre muito distante; por outro, arrependida, por nunca ter perguntado nada.

Desde aquele dia, não me interessei mais em ter aula. O pouco que aprendi no piano já era o suficiente para eu passar as minhas tardes de sábado tocando, com a lembrança antiga, porém viva, daquela figura esquisita.

Atualmente, moro num apartamento simples, sou formada em psicologia, e não me casei. Acredito que as pessoas vivem melhor sozinhas. E apenas hoje, aos trinta e nove, pude compreender o enigma que me consumiu durante anos.

Numa dessas conversas informais com meus pacientes, consegui o contato do meu antigo professor, através de um que disse ter estudado com ele. Escrevi uma carta pedindo-lhe que fosse ao meu apartamento, e assinei como uma ex-aluna que gostaria muito de revê-lo.

Na primeira semana, considerei a ideia da carta inútil, até ouvir o som da campainha no domingo à noite. Fora as vestes – idênticas àquelas usadas há alguns anos atrás – eu não o reconheceria. Na época, supunha que fosse uns dez anos mais velho que eu, e agora, a diferença parecia drástica. Era praticamente um idoso.

“O senhor não deve se lembrar de mim”, comecei, “mas, um pouco antes de se aposentar, me deu aulas particulares de piano”. Por um instante, pensei que fosse manifestar alguma recordação, mas ele apenas ergueu a sobrancelha e continuou sério, oscilando o olhar entre mim e o novo piano na sala. “O que você quer, afinal?”

Eu não pretendia ser tão direta antes de ter uma conversa que contribuísse para uma possível intimidade, mas não tive escolha. “O espelho... pra que se olhar tanto no espelho?”.

Ele se assustou com a pergunta. E eu, ainda mais, quando percebi o movimento da sua mão direita até o bolso, retirando o mesmo espelho. Sua cara não era a de quem confiava em mim, mas algo o fez falar, talvez a surpresa que aquela situação lhe causava. “Sempre vivi assim, e você é a primeira que demonstra curiosidade, mesmo depois de tanto tempo.”

Eu não sabia se sorria ou se permanecia séria. Fiquei com a segunda opção.

“Quando pequeno, descobri que sofria de uma doença grave, uma doença sem cura que provoca o envelhecimento acelerado. O médico recomendou que eu levasse uma vida normal. No início, eu tentei. Dediquei-me aos estudos, participei de várias apresentações, e depois comecei a dar aulas. Mas, com o tempo, tudo parecia perder o sentido. A cada minuto, eu me sentia mais velho, mais fraco, e sentia a necessidade de me olhar no espelho para conferir o meu estado. Essa obsessão me fez largar o trabalho e, de certa forma, a vida. Eu não pensava em nada que não fosse a doença. É como se eu vivesse esperando pela morte.”

Demorei alguns minutos para digerir aquele fluxo de palavras, ditas por uma voz cansada e relativamente baixa. Comecei a refletir sobre o que vestia: talvez o preto constante significasse um luto prévio pela sua morte; o chapéu seria para esconder uma futura calvície; a bengala, para prevenir qualquer problema antecipado nas pernas; e o óculos, para disfarçar a tristeza do olhar.

“O tempo não passa só pra você”, eu disse, sem considerar se seria melhor me manter calada. Seus lábios deram indícios de abrir um sorriso, mas logo se confundiram com a mesma expressão de antigamente, embora com um rosto não mais jovem. Ele se levantou, e sem dizer nada foi embora, deixando o espelho em cima da cadeira que sentara. Ainda não sei se foi de propósito. Quase o guardei como lembrança, mas preferi jogá-lo no lixo. Sentei para tocar piano, com meus pensamentos ainda fervendo e a leve impressão de que ele voltaria um dia.

2 comentários:

  1. Ai, amiiga, eu tenho taanto orgulho de vc! Muuito obrigada por sempre me dar a oportunidade de te ler, vc é muito talentosa! *--*
    Amo vc! ♥

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  2. Oi, Bru. Gostei muito mesmo do seu escrito. Bem misteriosa e leve ao mesmo tempo. Pensar na vida é bom, escrever sobre ela é dramático, e você dá conta muito bem. Parabéns!

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